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quinta-feira, 7 de maio de 2009

A ti, siempre alegría


A ti, siempre alegría

Es el pagaros gloria tan subida
que cuanto más os pago, más os debo.

A ti, siempre alegría
si jazmín amanezcas
o canario en la jaula
de mi ventana seas.
Pero más si tu cuerpo
en mi amor se concreta,
de una herencia celeste
suavísimo albacea.

Mucho más cuando carne
de mi carne te entregas
y ante tus labios pálidas
son todas las anémonas,
si luna, porque clara;
si mar, porque serena;
si vegetal, por ser
prisión para la estrella.

Pues te debo alegría
y esperanza y certeza
y ser quien soy sin ti
no puede ser sin mengua,
tómame por rehenes
de mi amorosa deuda
y canario en la jaula
de tu ventana sea.

Y todavía, entonces,
¿cómo no te debiera
el alpiste y el agua
y la lechuga tierna?
Tenme como un jazmín
silvestre que, a tu vera,
se nutra de suspiros,
mi amor, mientras sesteas.

Antonio Carvajal

domingo, 26 de abril de 2009

Por Entre os Sons da Música



Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Joga Todo o Teu Ser na Breve Idéia


(Pablo Picasso)

Joga todo o teu ser na breve idéia
que incerta entre o corrente te procura
pra lá do que banal te prende e enleia
e pelo destacá-la emerge pura.

Fazê-lo é dar-lhe já o que perdura.
Porque a banalidade que a medeia
como à pedra vulgar por entre a areia
esquece o que em tomá-la a rareia.

Ser homem é escolher o que o oriente
e ser-lhe o mais a margem que lhe mente.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

sábado, 25 de abril de 2009

Sinto na Angústia o Quem me Lembrasse



Sinto na angústia o quem me lembrasse
e do lembrar a mim como uma ponte
onde de noite já ninguém passasse
viesse a notícia desse outro horizonte

em que o meu grito preso na garganta
dissesse à voz que não ouvi e veio
quanto cansaço inverossímil, quanta
fadiga me enternece como um seio.

Vibrátil voga vaga pela tarde
que em cigarros distrai o eu estar só
a chama obscura que visível arde
quando arde ao sol o pó.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Fímbria de Melancolia



Fímbria de melancolia,
memória incerta da dor,
ouço-a no gravador,
no fado que não se ouvia
quando ouvia o seu clamor.

Porque era já no passado
o presente dessa hora
e que me ressoa agora
a um outro mais alongado.

Assim a dor que se sente
no outro obscuro de nós
nunca fala a nossa voz
mas de quem de nós ausente,
só a nós próprios consente
quando não estamos nós
mas mais sós do que ao estar sós.

Onde então estamos nós?


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Só nos Pertence o Gesto que Fizemos



Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.

Porque o traçado nosso em breve cessa,
para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.

Assim o nada a sagra quando finda
porque o que é, só é o não ainda.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Joga Todo o Teu Ser na Breve Ideia



Joga todo o teu ser na breve idéia
que incerta entre o corrente te procura
pra lá do que banal te prende e enleia
e pelo destacá-la emergi pura.

Fazê-lo é dar-lhe já o que perdura.
Porque a banalidade que a medeia
como à pedra vulgar por entre a areia
esquece o que em tomá-la a rareia.

Ser homem é escolher o que o oriente
e ser-lhe o mais a margem que lhe mente.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Cai a Chuva Abandonada



Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente

do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião

de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Que Há para Lá do Sonhar?



Céu baixo, grosso, cinzento
e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Vergílio Ferreira



Autor de uma obra multifacetada, repartida pelo romance, o conto, o ensaio e o diário,Vergílio Ferreira afirmou-se sobretudo como um dos grandes romancistas do séc. XX. Nascido em Melo, distrito da Guarda, em 1916, e falecido em Lisboa em 1996, o local de nascimento ficou largamente representado nos espaços literários dos seus romances, como representados ficaram outros que ele percorreu, nomeadamente as cidades de Coimbra e de Évora e o seminário do Fundão.

Da aldeia, ficar-lhe-ia a imagem da montanha como local simultaneamente real e mítico, na reverberação da luz estival ou da neve do inverno; de Coimbra (em cuja Universidade estudou e que em 1993 lhe concederia o grau de Doutor Honoris Causa), gravar-se-lhe-ia na memória a Universidade no alto da colina, batida pelo sol, e metonimicamente cristalizada na guitarra dos fados e das baladas; de Évora, onde o autor foi professor lical durante catorze anos, captou Vergílio a luminosidade e a pureza dos seus espaços branços e a sua mítica ancestralidade.

A contrastar com tudo isto, vem o seminário como espaço de clausura, de restrição das liberdades individuais, de terror e de princípios morais opressores.

Nos casos em que se trata de representar um real de características eufóricas (o que as salas e corredores do seminário de modo algum autorizavam  de notar que, ao contrário desta, todas as outras foram experiências de adulto), o Autor procedeu na sua escrita a uma irrealização dos espaços conhecidos e percorridos, transfigurando-os sempre em lugares míticos a reenviar para um espaço originário, não raras vezes poético. Lisboa, sua última residência, ficar-lhe-ia, por contraste, e não obstante o largo tempo em que nela permaneceu, sempre à margem, como lugar de passagem onde se não cria raízes. Daí o irónico desabafo aquando de um acidente naquela cidade, a saber: que tinha sido atropelado e que era muito bem que o fosse, porque não era dali.

Tendo-se iniciado na escrita na década de quarenta do século XX, a primeira fase da sua ficção, com O caminho fica longe (1943), Onde tudo foi morrendo (1944) e Vagão “J” (1946), seria de convergência na estética neo-realista. Mais tarde, no prefácio à segunda edição deste último livro, o único dessa fase que ele aceitou reeditar, o escritor, num balanço autocrítico, que é também de crítica ao dito movimento, demarca-se já dessa estética, deixando expressas as suas preferências por uma outra, de teor existencial, mais preocupada com as questões inerentes ao homem em geral.
Na linha da filosofia existencialista, que teve em Jean-Paul Sartre um dos seus expoentes máximos, e de escritores como Camus e o Malraux escritor da «condição humana», mas tendo ainda, num horizonte mais recuado, Dostoievski, Sófocles e os tragediógrafos gregos, e, mais próximo de nós, Raul Brandão, Vergílio adoptará definitivamente como seus os temas da vida e da morte, do amor, da solidão, da sondagem das profundezas do “eu”, na mira de um autoconhecimento que passa necessariamente pelo conhecimento do outro, da arte como forma de «dar a ver» o que a rotina do quotidiano esconde e como depuração da vida.

Em última instância, mantém-se uma nunca pacificada questão em torno da «morte de Deus», com o qual Vergílio, contraditoriamente, não cessa de travar um persistente (angustiado?) diálogo, e uma nostalgia de Absoluto ou de Transcendência, como que a solicitar o preenchimento do lugar vazio deixado por esse mesmo Deus.


Colocando, a partir de Manhã Submersa e em quase todos os romances que se lhe seguem, a personagem/narrador no centro do universo narrado, Vergílio Ferreira faz irradiar a partir dela os problemas existenciais, sendo esse recurso, no seu entender, uma forma de «presentificar» a acção para assim ele próprio se aproximar mais do leitor, interpelando-o e comovendo-o. Neste sentido, está o frequente recurso à metaficcionalidade, um dos lugares utilizados por Vergílio Ferreira para pensar a arte dentro da arte ou o romance dentro de romance. E revelando-se este frequentemente, pelas características da enunciação, como o lugar de uma presença emocionada (a do eu que se narra), está aberto caminho para a expressão lírica, o que afecta categorias essenciais da narrativa como o tempo, que ora se desestrutura, originando a fragmentaridade, ora se suspende, transformando o precário tempo da vida das personagens em eternidade, ou como o espaço, que se oferece menos como local da acção do que como projecção de um encantamento irrealizante.

Transversal a toda a problemática da sua ficção está ainda o problema da linguagem como instrumento de comunicação que tanto é fonte de (des)entendimento entre os homens como limitação para dizer situações-limite. Daí a reflexão sobre a linguagem do quotidiano, sobre os (des)encontros que ela possa provocar, a que se opõe a palavra artística, a que nos coloca na senda do invisível, que diz a angústia, mas também a fascinação e o «puro espanto de existir».

Embora os livros anteriores a Aparição (inclusivamente Mudança, de 1949, cujo título é já tido como indicativo de uma viragem) viessem a anunciar uma evolução, é com este livro de 1959 que Vergílio será definitivamente consagrado como representante do romance de feição existencial. A partir daí ele glosará obsessivamente os mesmos temas, embora estes sejam expostos segundo diferentes estruturas narrativas e desenvolvidos a partir de um problema novo ou perspectivado de ângulo diferente. Fá-lo distanciando-se cada vez mais da narrativa dita clássica, com uma história bem contada e uma ordenação temporalmente sequenciada. A justificação apresentada é que vivemos na época do fragmento, que a solidez de uma narrativa una e coesa não se coaduna com o nosso tempo, ao qual falta unidade e coesão. De resto, afirma também, não lhe interessa contar histórias à maneira do século XIX, mas comover a «abalar» o leitor, deixando-lhe um problema para reflectir.

Ensaísta notável, deixou-nos vários volumes de ensaios, uns de índole mais propriamente crítica (v.g., os de Espaço do invisível), outros (Carta ao Futuro, Do Mundo Original e Invocação ao Meu Corpo) aproximando-se, pela criatividade no tratamento dos temas e pela qualidade da escrita, da literatura. É isso visível em recursos técnico-formais como a figuração estilística, a estrutura sintáctica e o ritmo da frase, recursos que chegam a configurar certas páginas dessa prosa reflexiva como autênticas páginas de prosa poética.

Na sua vastidão, a obra de Vergílio Ferreira unifica-se nas preocupações temáticas que, sendo gerais, se configuram diferentemente consoante os géneros em que os temas são expressos. E sempre com a liberdade de quem as adapta ao seu jeito, transgredindo fronteiras entre narrativa e lírica, romance e ensaio, enfim, entre géneros ficcionais e não-ficcionais. Por isso também, o seu romance ficou conhecido pela dimensão ensaística que o Autor lhe imprimiu, classificando-o, ele próprio, de «romance-problema», igualmente conhecido por «romance-ensaio». Aliás, na perspectiva de Vergílio, o ensaio será o género que melhor poderá substituir o romance, no caso de algum dia se cumprir a, tão longamente anunciada, morte deste género literário.

Francisco Leonardo

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Da Realidade



Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.

Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'

Esperança



Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.


Miguel Torga,
in 'Penas do Purgatório'

Súplica



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga

Miguel Torga


Escritor português natural, de São Martinho de Anta, Vila Real. Proveniente de uma família humilde, teve uma infância rural dura, que lhe deu a conhecer a realidade do campo, sem bucolismos, feita de árduo trabalho contínuo. Após uma breve passagem pelo seminário de Lamego, emigrou com 13 anos para o Brasil, onde durante cinco anos trabalhou na fazenda de um tio, em Minas Gerais, como capinador, apanhador de café, vaqueiro e caçador de cobras. De regresso a Portugal, em 1925, concluiu o ensino liceal e frequentou em Coimbra o curso de Medicina, que terminou em 1933. Exerceu a profissão de médico em São Martinho de Anta e em outras localidades do país, fixando-se definitivamente em Coimbra, como otorrinolaringologista, em 1941.

Ligado inicialmente ao grupo da revista Presença, dele se desligou em 1930, fundando nesse mesmo ano, com Branquinho da Fonseca (outro dissidente), a Sinal, de que sairia apenas um número. Em 1936, lançou outra revista, Manifesto, também de duração breve.

A sua saída da Presença reflecte uma característica fundamental da sua personalidade literária, uma individualidade veemente e intransigente, que o manteve afastado, por toda a vida, de escolas literárias e mesmo do contacto com os círculos culturais do meio português. A esta intensa consciência individual aliou-se, no entanto, uma profunda afirmação da sua pertença à natureza humana, com que se solidariza na oposição a todas as forças que oprimam a energia viva e a dignidade do homem, sejam elas as tiranias políticas ou o próprio Deus. Miguel Torga, tendo como homem a experiência dos sofrimentos da emigração e da vida rural, do contacto com as misérias e com a morte, tornou-se o poeta do mundo rural, das forças telúricas, ancestrais, que animam o instinto humano na sua luta dramática contra as leis que o aprisionam. Nessa revolta consiste a missão do poeta, que se afirma tanto na violência com que acusa a tirania divina e terrestre, como na ternura franciscana que estende, de forma vibrante, a todas as criaturas no seu sofrimento. Mas essa revolta, por outro lado, não corresponde a uma arreligiosidade ou recusa da transcendência.

A sua obra, recheada de simbologia bíblica, encontra-se, antes, imersa num sentido divino que transfigura a natureza e dignifica o homem no seu desafio ou no seu desprezo face ao divino. A ligação à terra, à região natal, a Portugal, à própria Península Ibérica e às suas gentes, é outra constante dos textos do autor. Ela justifica o profundo conhecimento que Torga procurou ter de Portugal e de Espanha, unidos no conceito de uma Ibéria comum, pela rudeza e pobreza dos seus meios naturais, pelo movimento de expansão e opressões da história, e por certas características humanas definidoras da sua personalidade. A intervenção cívica de Miguel Torga, na oposição ao Estado Novo e na denúncia dos crimes da guerra civil espanhola e de Franco, valeu-lhe a apreensão de algumas das suas obras pela censura e, mesmo, a prisão pela polícia política portuguesa.

Contista exímio, romancista, ensaísta, dramaturgo, autor de mais de 50 obras publicadas desde os 21 anos, estreou-se em 1928 com o volume de poesia Ansiedade. Também em poesia, publicou, entre outras obras, Rampa (1930), O Outro Livro de Job (1936), Lamentação (1943), Nihil Sibi (1948), Cântico do Homem (1950), Alguns Poemas Ibéricos (1952), Penas do Purgatório (1954) e Orfeu Rebelde (1958). Na ficção em prosa, escreveu Pão Ázimo (1931), Criação do Mundo. Os Dois Primeiros Dias (1937, obra de fundo autobiográfico, continuada em O Terceiro Dia da Criação do Mundo, 1938, O Quarto Dia da Criação do Mundo, 1939, O Quinto Dia da Criação do Mundo, 1974, e O Sexto Dia da Criação do Mundo, 1981), Bichos (1940), Contos da Montanha (1941), O Senhor Ventura (1943, romance), Novos Contos da Montanha (1944), Vindima (1945) e Fogo Preso (1976).

É ainda autor de peças de teatro (Terra Firme e Mar, 1941; O Paraíso, 1949; e Sinfonia, poema dramático, 1947) de volumes de impressões de viagens (Portugal, 1950; Traço de União, 1955) e de um Diário em dezasseis volumes, publicado entre 1941 e 1994. Notável pela sua técnica narrativa no conto, pela expressividade da sua linguagem, frequentemente de cunho popular, mas de uma força clássica, fruto de um trabalho intenso da palavra, conseguiu conferir aos seus textos um ritmo vigoroso e original, a que associa uma imagística extremamente sugestiva e viva.

Várias vezes premiado, nacional e internacionalmente, foram-lhe atribuídos, entre outros, o prémio Diário de Notícias (1969), o Prémio Internacional de Poesia (1977), o prémio Montaigne (1981), o prémio Camões (1989), o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (1992) e o Prémio da Crítica, consagrando a sua obra (1993).
Em 2000, é publicado Poesia Completa.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Fonte

Imagem: Tela de Renoir


Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo -
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranqüilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

Herberto Helder

Mulher, casa e gato.

Tela: Renoir

Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstrato,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.

A pedra cai na cabeça do gato e o peixe
gira e pára no sorriso
da mulher da luz. Dentro da casa,
o movimento obscuro destas coisas que não encontram
palavras.
Eu próprio caio na mulher, o gato
adormece na palavra, e a mulher toma
a palavra do gato no regaço.
Eu olho, e a mulher é a palavra.

Palavra abstrata que arrefeceu no gato
e agora aquece na carne
concreta da mulher.
A luz ilumina a pedra que está
na cabeça da casa, e o peixe corre cheio
de originalidade por dentro da palavra.
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.

Deito-me e amo a mulher. E amo
o amor na mulher. E na palavra, o amor.
Amo com o amor do amor,
não só a palavra, mas
cada coisa que invade cada coisa
que invade a palavra.
E penso que sou total no minuto
em que a mulher eternamente
passa a mão da mulher no gato
dentro da casa.

No mundo tão concreto.


Herberto Helder

Sobre um Poema


Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

Herberto Helder


Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica. Em 1946, com 16 anos, viaja para Lisboa para frequentar o 6º e o 7º ano do curso liceal.

Em 1948, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, em 1949, muda para a Faculdade de Letras onde frequenta, durante três anos, o curso de Filologia Romântica, não tendo terminado o curso. Três anos mais tarde regressa a Lisboa, começando por trabalhar durante algum tempo na Caixa Geral de Depósitos e depois como angariador de publicidade, sendo que durante este tempo vive, por razões de ordem vária e pessoal, numa “casa de passe”.

Em 1954, data da publicação do seu primeiro poema em Coimbra, regressa à Madeira onde trabalha como meteorologista, seguindo depois para a ilha de Porto Santo. Quando em 1955 regressa a Lisboa, frequenta o grupo do Café Gelo, de que fazem parte nomes como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo.

Durante esse período trabalha como propagandista de produtos farmacêuticos e redator de publicidade, vivendo com rendimentos baixos. Três anos mais tarde, em 1958, publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita. Durante os anos que se seguiram vive em França, Holanda e Bélgica, países nos quais exerce profissões pobres e marginais, tais como: operário no arrefecimento de lingotes de ferro numa forja, criado numa cervejaria, cortador de legumes numa casa de sopas, empacotador de aparas de papéis e policopista.

Em Antuérpia, viveu na clandestinidade e foi guia dos marinheiros no sub mundo da prostituição. Repatriado em 1960, torna-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorrendo as vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo.

Nos dois anos seguintes publica os livros A Colher na Boca, Poemacto e Lugar. Em 1963 começa a trabalhar para a Emissora Nacional com redator de noticiário internacional, período durante o qual vive em Lisboa. Ainda nesse mesmo ano publica Os Passos em Volta e produz A máquina de emaranhar paisagens.

Em 1964 trabalha nos serviços mecanográficos de uma fábrica de louça, datando desse ano a sua participação na organização da revista Poesia Experimental. Nesse ano reedita ainda Os Passos em Volta, escreve ‘Comunicação Académica’ e publica Electronicolírica.

Em 1966 participa na co-organização do segundo número da revista Poesia Experimental e no ano seguinte publica Húmus, Retrato em Movimento e Ofício Cantante. Data de 1968 a sua participação na publicação de um livro sobre o Marquês de Sade, o que o leva a ser envolvido num processo judicial no qual foi condenado. Porém, devido às repercussões deste episódio consegue obter suspensão de pena, fato este que não conseguiu evitar que fosse despedido da Rádio e da Televisão portuguesas.

Refugia-se na publicidade e, posteriormente, numa editora onde desempenha o cargo de co-gerente e diretor literário. Ainda nesse ano publica os livros Apresentação do Rosto, que foi suspenso pela censura, O Bebedor Noturno e ainda Kodak e Cinco Canções Lacunares.

Em 1970 viaja por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca, publicando nesse ano a terceira edição de Os Passos em Volta e escreve Os Brancos Arquipélagos. Em 1971 desloca-se para Angola onde trabalha como redator numa revista. Enquanto repórter de guerra é vítima de um grave desastre tendo que ser hospitalizado durante três meses.

Data ainda desse ano a publicação de Vocação Animal e a produção de Antropofagias. Regressa a Lisboa e parte de novo, desta vez para os E.U.A., em 1973, ano durante o qual publica Poesia Toda, obra que contém toda a sua produção poética, e faz uma tentativa frustrada de publicar Prosa Toda.

Em 1975 passa alguns meses na França e Inglaterra, regressando posteriormente a Lisboa onde trabalha na rádio e em revistas, meios restritos de sobrevivência econômica. Em 1976, Herberto Helder participa na edição e organização da revista ‘Nova’ que, sendo posterior à revolução de 25 de Abril de 1974, reconhecia na Literatura portuguesa características que a aproximaram às Literaturas latino-americana, africana e espanhola, declinando uma direção literária revolucionária cuja atividade não ultrapassou o plano teórico devido à instabilidade política portuguesa que se fazia sentir na altura.

Nos anos que se seguiram publicou as obras Cobra, O Corpo, O Luxo, A Obra e Photomaton e Vox. A última referência encontrada da instabilidade biográfica de Herberto Helder referia-se ao fato de o poeta ter abandonado todas as suas anteriores atividades e de viver no mais cioso dos anonimatos.

OBRAS

* Poesia – O Amor em Visita (1958)
* A Colher na Boca (1961)
* Poemato (1961)
* Retrato em Movimento (1967)
* O Bebedor Noturno (1968)
* Vocação Animal (1971)
* Cobra & etc. (1977)
* O Corpo o Luxo a Obra (1978)
* Photomaton & Vox (1979)
* Flash (1980)
* A Cabeça entre as Mãos (1982)
* As Magias (1987)
* Última Ciência (1988)
* Do Mundo, (1994)
* Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971) (1973)
* Poesia Toda (1ª ed. em 1981)
* A Faca Não Corta o Fogo - Súmula & Inédita (2008)
* Ofício Cantante (2009)

Ficção

* Os Passos em Volta (1963)
* Apresentação do Rosto (1968).
* A Faca Não Corta o Fogo(2008).

sábado, 4 de abril de 2009

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser

se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

Mia Couto


António Emílio Leite Couto é o nome completo de Mia Couto, filho de Maria de Jesus e Fernando Couto. Nasceu na cidade da Beira, Moçambique, a cinco de Julho de 1955. É considerado um dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos que escrevem em português. Isso deve-se não só á forma como descreve e trata os problemas e a vida quotidiana do Moçambique contemporâneo, mas principalmente á inventiva poética da sua escrita, numa permanente descoberta de novas palavras através de um processo de mestiçagem entre o português "culto" e as várias formas de dialetos introduzidas pelas populações moçambicanas. Mia é assim uma espécie de mágico da língua, criando, apropriando, recriando, renovando a língua portuguesa em novas e inesperadas direcções. Tem, devido a essa autêntica revolução de inventiva linguística, sido muito apropriadamente comparado a um outro grande mágico da Língua Portuguesa do século XX, o escritor brasileiro João Guimarães Rosa.

Mia Couto foi desde 1974 e durante vários anos, diretor da Agência de Informação de Moçambique, seguidamente dirigiu o jornal Noticias de Maputo e a revista Tempo. Posteriormente, estudou medicina e biologia e é atualmente biólogo na reserva natural da Ilha da Inhaca, em Moçambique.
Vencedor de vários prêmios, Mia Couto tem a sua obra traduzida em muitos países, entre eles Alemanha, Bélgica, Brasil, Bulgária, Chile, Croácia, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Israel, Itália, HolandaPolônia, Noruega, Reino Unido, República Checa e Suécia.

A escrita tem sido uma paixão constante, desde a poesia, com que estreou em 1983. A questão do gênero literário não é, de resto, a mais importante para um autor cuja escrita prosa e poesia se contaminam e que escreve "pelo prazer de desarrumar a língua".
Questões mais importantes relacionadas com sua obra são as relacionadas com a vida do povo moçambicano, um dos mais pobres e martirizados do mundo, recém saido de 30 anos de guerra civil e onde persiste uma forte tradição de transmissão da literatura e dos saberes essencialmente por via oral. Numa cultura onde se diz que "cada velho que morre é uma biblioteca que arde", Mia empreende uma escrita que liga a tradição oral africana á tradição literária ocidental, tal como no seu trabalho de biólogo liga, no estudo da floresta, o saber ancestral dos anciãos sobre o espírito das árvores e das plantas á moderna ciência da Ecologia. Essencial, num caso como noutro, é sempre a relação mais profunda entre o humano e a terra, entre um humano e outro humano, por vezes nas suas condições mais extremas.

OBRA

• Raiz de Orvalho (poesia, 1983)
• Vozes Anoitecidas (relatos, 1986)
• Cada Homem é uma Raça (relatos, 1990)
• Cronicando (crônicas, 1991)
• Terra Sonâmbula (novela, 1992)
• Estórias Abensonhadas (relatos, 1994)
• A Varanda do Frangipani (novela, 1996)
• Contos do nascer da terra (relatos, 1997)
• Mar me quer (novela, 1998)
• Vinte e Zinco (novela, 1999)
• O Último Vôo do Flamingo (novela, 2000)
• O Gato e o Escuro (livro infantil, 2001)
• Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos (relatos, 2001)
• Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (novela, 2002)
• Contos do Nascer da Terra (relatos, 2002)
• O país do queixa andar (crônicas, 2003)
• O fio das missangas (relatos, 2003)
• A Chuva Pasmada (novela, 2004)
• O Outro Pé da Sereia (novela, 2006)

Prêmios

- Em 1999, Mia Couto recebeu o Prémio Vergílio Ferreira, pelo conjunto da sua obra.
- Em 2007 recebeu o Prémio União Latina de Literaturas Românicas.
- Em 2007 foi o vencedor do Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, na Jornada Nacional de Literatura.

Fonte: Comunidade Biografia e Poesia Portuguesa - ORKUT

Poema da Despedida


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo

Mia Couto

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Rosa Pálida


Rosa pálida, em meu seio
Vem querida, sem receio
esconder a aflita cor.
Ai! a minha pobre rosa!
Cuida que é menos formosa
Porque desbotou de amor.

Pois sim... quando livre, ao vento,
Solta da alma e pensamento,
Forte de sua isenção.
Tinhas na folha incendiada
O sangue, o calor e a vida
Que ora tens no coração.

Mas não era, não, mais bela,
Coitada, coitada dela,
A minha rosa gentil!
Curvavam-na então desejos,
Desmaiam-na agora os beijos...
Vales mais mil vezes, mil.

Inveja das outras flores!
Inveja de quê, amores?
Tu, que vieste dos céus,
Comparar tua beleza
Às folhas da natureza!
Rosa, não tentes a Deus.

É vergonha... de quê, vida?
Vergonha de ser querida,
Vergonha de ser feliz!
Porquê? Porquê em teu semblante
A pálida cor da amante
A minha ventura diz?

Pois, quando eras tão vermelha
Não vinha zangão e abelha
Em torno de ti zumbir?
Não ouvias entre as flores
Histórias de mil amores
Que não tinhas, repetir?

Que hão-de eles dizer agora?
Que pendente e de quem chora
É o teu lânguido olhar?
Que a tez fina e delicada
Foi de ser muito beijada,
Que te veio a desbotar?

deixa-os: pálida ou corada,
Que isenta ou namorada,
Que brilhe no prado flor,
Que fulja no céu estrela,
Ainda é ditosa e bela
Se lhe dão só um amor.


Almeida Garrett

Almeida Garrett


João Batista da Silva Leitão de Almeida, nome completo do escritor, nasceu no Porto em 1799 e faleceu em Lisboa em 1854.
O apelido irlandês está na genealogia da família: Garrett é o nome da sua avó paterna, que veio para Portugal no séquito de uma princesa.
Na adolescência foi viver para os Açores, em Angra do Heroísmo, quando as tropas francesas de Napoleão Bonaparte invadiram Portugal e onde era instruído pelo tio, D. Alexandre, bispo de Angra. Em 1816 seguiu para Coimbra, onde se matriculou no curso de Direito. Em 1821 publicou O Retrato de Vênus, trabalho que lhe custou um processo por ser considerado materialista, ateu e imoral.E neste mesmo ano que ele e sua família passam a usar o apelido de Almeida Garrett.

Participou da revolução liberal de 1820, seguindo para o exílio na Inglaterra em 1823, após a Vilafrancada. Antes havia casado com Luísa Midosi, de apenas 14 anos. Foi em Inglaterra que tomou contacto com o movimento romântico, descobrindo Shakespeare, Walter Scott e outros autores e visitando castelos feudais e ruínas de igrejas e abadias góticas, vivências que se refletiriam na sua obra posterior. Em 1824, seguiu para França, onde escreveu Camões (1825) e Dona Branca (1826), poemas geralmente considerados como as primeiras obras da literatura romântica em Portugal. Em 1826 foi anistiado e regressou à pátria com os últimos emigrados dedicando-se ao jornalismo, fundando e dirigindo o jornal diário O Português (1826-1827) e o semanário O Cronista (1827). Teria de deixar Portugal novamente em 1828, com o regresso do Rei absolutista D. Miguel. Ainda nesse ano perdeu a filha recém-nascida. Novamente em Inglaterra, publica Adozinda (1828) e Catão (1828).

Juntamente com Alexandre Herculano e Joaquim António de Aguiar, tomou parte no Desembarque do Mindelo e no Cerco do Porto em 1832 e 1833.

A vitória do Liberalismo permitiu-lhe instalar-se novamente em Portugal, após curta estadia em Bruxelas como cônsul-geral e encarregado de negócios, onde lê Schiller, Goethe e Herder. Em Portugal exerceu cargos políticos, distinguindo-se nos anos 30 e 40 como um dos maiores oradores nacionais. Foram de sua iniciativa a criação do Conservatório de Arte Dramática, da Inspecção-Geral dos Teatros, do Panteão Nacional e do Teatro Normal (atualmente Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa). Mais do que construir um teatro, Garrett procurou sobretudo renovar a produção dramática nacional segundo os cânones já vigentes no estrangeiro.

Com a vitória cartista e o regresso de Costa Cabral ao governo, Almeida Garrett afasta-se da vida política até 1852.Contudo, em 1850 subscreveu, com mais de 50 personalidades, um protesto contra a proposta sobre a liberdade de imprensa, mais conhecida por “lei das rolhas”.

A vida de Garrett foi tão apaixonante quanto a sua obra. Revolucionário nos anos 20 e 30, distinguiu-se posteriormente sobretudo como o tipo perfeito do dandy, ou janota, tornando-se árbitro de elegâncias e príncipe dos salões mundanos.Foi um homem de muitos amores, uma espécie de homem fatal. Separado da esposa, passa a viver em mancebia com D. Adelaide Pastor até à morte desta em 1841. A partir de 1846, a sua musa é a viscondessa da Luz, Rosa Montufar Infante, inspiradora dos arroubos românticos das Folhas caídas. Em 1851, Garrett é feito visconde de Almeida Garrett em duas vidas, e em 1852 sobraça, por poucos dias, a pasta dos Negócios Estrangeiros em governo presidido pelo Duque de Saldanha.

Falece em 1854, vítima de cancer ,em Lisboa, na sua casa situada na atual Rua Saraiva de Carvalho, em Campo de Ourique.

OBRAS

1819 Lucrécia
1821 O Retrato de Vénus; Catão (representação); Mérope (representação)
1822 O Toucador
1825 Camões
1826 Dona Branca
1828 Adozinda
1829 Lírica de João Mínimo; Da Educação (ensaio)
1830 Portugal na Balança da Europa (ensaio)
1838 Um Auto de Gil Vicente
1841 O Alfageme de Santarém (1842 segundo algumas fontes)
1843 Romanceiro e Cancioneiro Geral - tomo 1; Frei Luís de Sousa (representação)
1845 O Arco de Sant'Ana - tomo 1; Flores sem fruto
1846 Viagens na minha terra; D. Filipa de Vilhena (inclui Falar Verdade a Mentir e Tio Simplício)
1848 As profecias do Bandarra; Um Noivado no Dafundo; A sobrinha do Marquês
1849 Memória Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira
1850 O Arco de Sant'Ana - tomo 2;
1851 Romanceiro e Cancioneiro Geral - tomos 2 e 3
1853 Folhas Caídas
1871 Discursos Parlamentares e Memórias Biográficas (antologia póstuma)

Fonte: Comunidade Biografia e Poesia Portuguesa

Não és tu


Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,
Ingênuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu...ai! não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.


Almeida Garrett

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Encontro

Tela de Jean Leon Gerome

Que vens contar-me se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo: chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber: que a ciência aprenda comigo já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça se me agrada não ter horas a toda a hora?

A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas se este é o meu auge?!

Eu tive a dita de me terem roubado tudo menos a minha torre de marfim.

Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.

Só não sei que faça da porta da torre que dá para donde vim.

Almada Negreiros

Almada Negreiros


José Sobral de Almada Negreiros é uma das figuras marcantes da geração modernista de "Orpheu". Nasceu em São Tomé e Príncipe a 7 de Abril de 1893 e morreu em Lisboa a 15 de Junho de 1970.

Filho do tenente de cavalaria António Lobo de Almada Negreiros, administrador do concelho de S. Tomé e de Elvira Sobral, foi educado no Colégio de Campolide, dos Jesuítas, e mais tarde, devido à extinção do Colégio em 1910, e por pouco tempo, no Liceu de Coimbra.

“Em 1911 ingressa na Escola Internacional de Lisboa, que tem um ensino mais moderno, e onde lhe proporcionam um espaço que lhe vai servir de oficina. e publica o primeiro desenho n'A Sátira. Em 1912 redige e ilustra integralmente o jornal manuscrito A Paródia, reproduzido a copiógrafo na Escola, expõe no I Salão dos Humoristas Portugueses, e colabora com desenhos para várias publicações.

Em 1913 realiza a primeira exposição individual, apresentando cerca de 90 desenhos na Escola Internacional, e conhece Fernando Pessoa, que escrevera uma crítica à exposição n'A Águia. Continua a colaborar como ilustrador para várias publicações, e em 1914 torna-se diretor artístico do semanário monárquico Papagaio Real.

No ano seguinte, escreve a novela A Engomadeira, publicada em 1917, onde aplica o interseccionismo teorizado por Fernando Pessoa, abeirando-se do surrealismo. Colabora no primeiro número da revista Orpheu, depreciado por Júlio Dantas, que afirma que não há justificação para o sucesso da revista e para a publicidade feita ao seu redor, afirmando que os autores são pessoas sem juízo. Ainda nesse ano de 1915, Almada realiza o bailado O Sonho da Rosa.

Em 21 de Outubro do mesmo ano estreia-se a peça de Júlio Dantas Soror Mariana. Almada irá reagir com a publicação do Manifesto Anti-Dantas.

O Manifesto causa algum impacto nos meios artísticos. Almada começa a corresponder-se com Sonia Delaunay, refugiada em Portugal com o marido por motivo da Guerra que assola a Europa. Publica o Manifesto da exposição de Amadeo de Souza Cardoso, com o título Primeira Descoberta de Portugal na Europa no Século XX.

Em 1917 realiza, vestido de operário, a conferência Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, e publica a novela K4 O Quadrado Azul, que inspirou o quadro homônimo de Eduardo Viana. 1918, é quase inteiramente dedicado ao bailado integrando o grupo de Helena de Castelo Melhor.

Em 1919, com o fim da Primeira Guerra Mundial, parte para Paris, onde exerce atividades de sobrevivência, e escreve Histoire du Portugal para coeur, publicada em 1922, mas regressa no ano seguinte.

Em 1921 começa a colaboração com António Ferro, que o apresenta quando Almada realiza a conferência A Invenção do Corpo, como "o imaginário na terra dos cegos", e posteriormente o convida para desenhar para a Ilustração Portuguesa. Em 1923 Almada desenhará a capa do livro de Ferro, A Arte de Bem Morrer, continuando a produzir ilustrações para revistas, cartazes para empresas e publicando peças como Pierrot e Arlequim (1924), romances como Nome de Guerra (1925) e ensaios como A Questão dos Painéis; a história de um acaso de uma importante descoberta e do seu autor (1926).

De 1927 a 1932 vive em Espanha, e em 1934 casa com a pintora Sarah Afonso. Começa a ser solicitado regularmente para a realização de trabalhos de índole oficial, como seja um selo para a emissão comemorativa da 1.ª Exposição Colonial, um cartaz para o álbum Portugal 1934 editado pelo Secretariado da Propaganda Nacional e ilustrações para o programa das Festas da Cidade de Lisboa, e sobretudo começa os estudos para os vitrais a colocar na Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa, que concluirá em 1938. Esta colaboração com a «Política do Espírito» de António Ferro culmina em 1941, quando o S.P.N. organiza a exposição Almada - Trinta Anos de Desenho, e o convida a participar na 6.ª Exposição de Arte Moderna e na exposição Artistas Portugueses apresentada no Rio de Janeiro, no Brasil e lhe atribui, em 1942, o Prêmio Columbano.

De 1943 a 1948 a sua atividade incide na realização dos frescos das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, sendo-lhe atribuído o Prêmio Domingos Sequeira em 1946.

Regressa à realização de vitrais em 1951, desenhando os da Igreja do Santo Condestável, Lisboa, e os da Capela de S. Gabriel, em Vendas Novas, e à pintura em 1954, quando pinta o Retrato de Fernando Pessoa.

A sua atividade, no final dos anos 50, incide na decoração de obras de arquitetura, como sejam:

- painéis para o Bloco (Edifício) das Águas Livres e frescos para a Escola Patrício Prazeres (1956);

- decoração das fachadas dos edifícios da Cidade Universitária (1957);

- cartões de tapeçaria para a Exposição de Lausanne, o Tribunal de Contas e o Hotel de Santa Luzia de Viana do Castelo (1958) e o Palácio da Justiça de Aveiro (1962);

Realiza as suas últimas obras em 1969 - o painel Começar no átrio da Fundação Calouste Gulbenkian, começado no ano anterior, e os frescos Verão na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra.

Em 15 de Junho de 1970 morre no Hospital de São Luís dos Franceses, no mesmo quarto em que tinha morrido Fernando Pessoa.

OBRAS

K4 O Quadrado Azul(2000)
Nome de Guerra (2001)
Ficções(2002)
A Invenção do Dia Claro (2005)
Poemas (2005)
Manifestos e Conferências (2006)

Fonte: Comunidade ORKUT, Biografia e Poesia Portuguesa.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

O Beijo



Beijo na face,
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá !

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá !

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
Vá !

Guardo segredo,
Não tenha medo:
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê !

Como ele é doce !
Como ele trouxe,
Flor,
Paz a meu seio !
Saciar-me veio,
Amor !

Saciar-me? Louco...
Um é tão pouco,
Flor !
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
Amor !

Talvez te leve
O vento em breve,
Flor !
A vida foge,
A vida é hoje,
Amor !

Guardo segredo,
Não tenhas medo
Pois !
Um mais na face,
E a mais não passe !
Dois...

Oh ! dois? piedade !
Coisas tão boas...
Vês ?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Três !

Três é a conta
Certinha e justa...
Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta !
Três !

Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
Três !

João de Deus

João de Deus


De seu nome completo João de Deus Ramos, poeta lírico, dos maiores da língua portuguesa, nasceu em S. Bartolomeu de Messines (Algarve) em 8-03-1830 e morreu em Lisboa a 11-01-1896. Era filho de José Pedro Ramos comerciante, e de D. Isabel Gertrudes Martins.

A primeira instrução recebeu-a em casa, aprendendo então o latim. Em 1849 partiu para Coimbra, e ali, no seminário episcopal, terminou os preparatórios para ir cursar o Direito na Universidade.

O seu desenvolvimento espiritual nada deveu ao ensino universitário, que se achava então num dos seus períodos de maior decadência. No ano de 1850-51 ficou em S. Bartolomeu de Messines, perdendo o curso a que pertencia, e foi então que compôs a sua primeira poesia.

Voltou à Universidade em 1851-52 como «adventício do 2.º ano». Matriculado no 4.º ano jurídico de 1853-54, perdeu-o por faltas.
Em 1854-55 matriculou-se outra vez no 4.º ano jurídico e no 1.º curso administrativo. Em 1855, datada de 15 de Junho, apareceu a sua elegia Oração, com a dedicatória: «À Ex.ma Senhora D. R. C. N.». Era a gentil D. Raquel Nazaré, de uma conhecida família de Coimbra. Pouco tempo passado falecia ela, quase logo depois seguida pela mãe. Sob esta impressão escreveu o poeta outra elegia, com o título de Raquel, dedicada à irmã da falecida, D. Cândida Nazaré.

Tomado o grau de bacharel não regressou à Universidade nos anos de 56 a 58 chegando a pensar em que não terminaria a formatura. A prolongada doença de uma irmã fê-lo regressar a Coimbra em 1858 matriculando-se então no 5.º ano.
A formatura de João de Deus, como ele próprio pitorescamente dizia, «levou 10 anos, como a guerra de Tróia». Ao tempo em que se matriculava finalmente no 5.º ano, com um atraso de 4, tomava matrícula no 1.º Antero de Quental, que desde logo o admirou e exaltou muito. Em 1860, escrevia sobre João de Deus o futuro poeta dos Sonetos: « João de Deus é um desses mancebos, ricos de crença e de esperança, que se erguem por vezes no meio das turba entoando um cântico cheio de frescor e de vida, de bela e poderosa originalidade.

O que é hoje é já bastante; muito, porém, o que pode e deve ser. É muito porque é natural, porque escreve o que sente e quanto sente. Exalta-se pela imaginação, e, sustentando-se aí porque o entusiasmo lhe vem da alma, faz-nos amar e crer, chorar e sofrer com ele, porque o sentimento é real, brota do íntimo.

Homem, chora e alegra-se crê e duvida, como todos nós, como tudo que tem alma, como tudo que aspira ao infinito e se sente encadeado nesta prisão, vendo flutuar eternamente ante si o grande problema da verdade; poeta, sentindo em si a necessidade fatal de exprimir em cantos tudo que lhe vai dentro, diz o que sente na forma que lhe brota espontânea da ideia, fala a linguagem de seu coração… Lendo-se, conhece-se que não é uma inspiração fictícia aquela, porque só a verdade tem o poder de fazer sentir tudo quanto a palavra representa.

Naqueles versos há uma existência de homem que fala; como que se vê palpitar a vida e bater o sangue na artéria». E, continuando a fazer considerações sobre a poesia a propósito de João de Deus, o jovem Antero observava: «A verdade, eis a suma de toda essa legislação» (da estética). Ser natural, eis o supremo preceito». «Verdade», «naturalidade», eram com efeito palavras perfeitamente ajustadas à poesia de João de Deus.

Terminada a formatura em 1859, João de Deus deixou-se ficar em Coimbra no meio dos companheiros estudantes, até ao ano de 1862. Antero interessou-se por que se editassem as poesias compostas pelo seu amigo, e quanto se coligiu para essa edição, que nunca chegou a efetuar-se, foi parar à Biblioteca de Évora, constando de 33 poesias, características da sua primeira fase.

Nos últimos anos de Coimbra propendeu para a sátira, onde se manteve sempre bastante abaixo das alturas a que subiu na lírica. Indo de regresso para o Algarve em 1862, demorou-se em Beja, contratado para a redação do periódico O Bejense. Ocupou-se nessas funções até 1864, deixando ali muitas composições líricas. Em 1868 apareceram as suas poesias coligidas em volume com o título de Flores do Campo, depois de andarem reproduzidas por jornais. Em 1869 foi eleito deputado por Silves, por influência de José António Garcia Blanco e Domingos Vieira, o que levou o poeta a fixar residência em Lisboa.

A política não o atraía, e aceitara a eleição sobretudo por condescendência ao pedido dos amigos; por isso só se conservou numa legislatura, raras vezes aparecendo na Câmara. Durante esse tempo sofreu grandes privações. Passava grande parte do dia e da noite no café Martinho, cavaqueando. O casamento com D. Guilhermina Battaglia (v.) fê-lo abandonar esse costume.

Em 1888 obtiveram para ele a nomeação de comissário geral do ensino da leitura segundo o método de que era autor, e que foi declarado nacional (v. Cartilha Maternal). Em 1868 apareceram as suas poesias coligidas sob o título de Flores do Campo, publicadas por José António Garcia Blanco; em 1878 saiu no Porto uma 2.ª edição, sendo de 1869 a colectânea Ramo de flores. De 1893 é a edição com o título Campo de Flores, organizada por Teófilo Braga, que coligiu tudo que do poeta havia disperso.

O autor deixou em meio uma nova edição do Campo de Flores, que saiu em 1896, na qual foram inclusas mais 120 poesias que se encontravam em diferentes jornais. Em 8-III-1895 fez-se-lhe uma manifestação promovida pela juventude das escolas, apoteose majestosa, como nunca se vira em Lisboa. No cortejo que o foi saudar a casa, iam todos os estudantes das escolas superiores e inferiores de Lisboa, os da Universidade de Coimbra, do Porto, Santarém, Braga, Lamego e Portalegre, etc., com seus estandartes; representava-se toda a imprensa portuguesa, tunas académicas, povo, crianças.

A Academia Real das Ciências e o Instituto de Coimbra proclamaram-no seu sócio de honra. Seguiu-se à manifestação, que se repetira no dia 9, um sarau em D. Maria, a que foi assistir o Rei D. Carlos I e o poeta saiu da sala por sobre capas de estudantes, sendo levado a casa num trem a que os rapazes desatrelaram os cavalos e puxaram por cordas durante o trajeto. Falecido a 11-I-1896, o seu funeral foi outra manifestação verdadeiramente imponente e o corpo ficou no panteão dos Jerónimos, em Belém.


A poesia de João de Deus, de todo alheia a escolas, não tem a marca da respectiva época, conservando-se igualmente distante do erotismo falso, piegas, melodramático, pretensioso, de um degeneradíssimo lamartinismo, que caracterizou a obra dos ultra-românticos, e dos ideais filosóficos, científicos, revolucionários, próprios dos poetas típicos do Terceiro Romantismo. Indiferente a uma e outra escola, João de Deus ateve-se à verdade da sua maneira de ser, simples, ardorosa, encantada e elevada.

Os temas fundamentais da sua lírica são Deus e a mulher, a aspiração religiosa e o impulso erótico. Como escreveu José Régio, «desde a sensualidade cândida à veneração mística, o seu amor adeja buscando a forma, e atingindo o espírito em virtude da natural elevação e da imperturbável inocência do poeta. Inocente, nenhum poeta amoroso o foi mais que João de Deus.

A sua sensualidade expande-se em confissões e enlevos de tanta ingenuidade e frescura, que o desejo, várias vezes presente nos seus versos, aí aparece despido de toda a fealdade. Nada de obsceno, de pervertido, de culpado, de hipócrita, macula a puríssima naturalidade do seu impulso para a mulher. Deste amor sensual, embora alado, ergue-se o poeta ao culto da mulher. O seu amor sobe a chamar-se adoração; e é uma simpatia de alma enlevada, um apelo de ser íntimo e supremo, uma sedução espiritualizada pela religiosidade do amante. De tal amor, em que o poeta místico e o sensual se fundem, não irá grande distância, em certas naturezas, ao amor divino.

O poeta algumas vezes interroga e duvida; mas logo verga a cabeça no seio de seu criador. E a espontânea unção de seu espírito dita-lhe versos – todos os seus versos de carater piedoso – em que a luminosa simplicidade dos processos só tem rival na religiosidade do sentimento ou na originalidade da expressão». A primeira poesia escrita por João de Deus parece ter sido Pomba (1851), publicada primeiro no Eco do Lima e depois no Campo de Flores.

As revistas em que apareceram as suas primeiras produções poéticas, quase todas ditadas a amigos que depois as faziam sair a lume, foram:

Estreia Literária, Ateneu, Instituto (todas de Coimbra), Prelúdios literários, Fósforo, Academia, Renascença, Tira Teimas, Herculano, etc., etc. Além das edições já mencionadas, houve: Horácio e Lídia (uma ode de Horácio), Comédia num acto em verso por F. Ponsard, etc., traduzida também em verso, e acompanhada do original, Lisboa, 1872; Pires de marmelada, improviso académico, Lisboa, 1869; Despedidas do verão, poesias; Folhas soltas, Porto, 1876; Cartilha maternal de leitura, com numerosas edições a partir de 1876; A cartilha maternal e a imprensa, Lisboa, 1877; A cartilha maternal e o apostolado; a tradução dos Deveres dos filhos, obra de Th. H. Barrau, Lisboa, 1875; Dicionário prosódico de Portugal e Brasil, Lisboa, 1870; as traduções de quatro peças de Méry: Amemos o nosso próximo, parábola em 1 ato. Ser apresentado, comédia em 1 ato, Ensaio de casamento, comédia em 1 ato, A viúva inconsolável, comédia em 4 partes; a versão da Vida da Virgem Maria, de monsenhor Darboy, arcebispo de Paris, Lisboa, 1873; Grinalda de Maria, prosa do padre António Vieira, versos de João de Deus, Lisboa 1877;

Os Lusíadas e a conversação preambular, carta a Avelino de Sousa, 1880; Provérbios de Salomão, 1886, Campo de Flores, ed. Econômica, com mais 15 poesias que a anterior (1897), e Prosas, 1898 (póstumo). Em 1905 a antiga Casa Bertrand editou O Festival de João de Deus, apoteose da autoria de Teófilo Braga. Em 1930 saiu uma antologia da lírica, organizada por Afonso Lopes Vieira, com o título O Livro de amor de João de Deus (Lisboa, Bertrand).

O Algarve erigiu-lhe na Praça D. Francisco Gomes, em Faro um modesto monumento e a Câmara deu a uma das ruas próximas do Liceu, que também se denomina «Liceu João de Deus» o nome do grande poeta. No jardim Guerra Junqueiro, o antigo Passeio da Estrela, de Lisboa, foi inaugurado em 1942 um busto do poeta. Têm o nome de João de Deus os jardins-escola fundados por seu filho João de Deus Ramos.

OBRA POÉTICA

Flores do Campo (1868),
Folhas Soltas (1876) e
Campos de Flores(1893)

terça-feira, 31 de março de 2009

Transantúltimas vontades


A meus filhos — para que as
cumpram, ou não, e as façam
(ou não) cumprir.

Meninos, tomem sentido:
amanhã já não me acordem.
— É isso, pai, um pedido?...
— Não, amores: é uma ordem.

Vou morrer menino e moço,
sem pátria nem parentela,
com esta cruz ao pescoço
e a coroa real na lapela.

Pretendo um inteiro olvido.
Não quero que me recordem.
— É isso, pai, um pedido?...
— Não, amores: é uma ordem.

Rodrigo Emílio

Para a menina de seu pai


Para a menina de seu pai,
Trint’anos depois...

A minha filha primeira
nasceu após o Natal.
Esta lágrima... Esta olheira...
datam do seu funeral.

Tinha um perfil tão perfeito
— de filigrana franzina,
essa menina-de-peito
que me morreu, em menina...!

F’lipinha não se esvai...
Faz hoje anos. Trinta anos!
Veio convidar o pai
para a festa ser de ambos...


Rodrigo Emílio

Rodrigo Emílio



Rodrigo Emílio de Alarcão Ribeiro de Mello nasceu em Lisboa a 18 de Fevereiro de 1944, um mês depois de perder a avó paterna, que não chegou a conhecer. Perdeu o pai a 27 de Setembro de 1952, quando ainda não tinha dez anos, que lhe causa um vazio infindável.



Em 1953, sofre um novo desgosto com a morte do avô paterno. Estudou no Colégio João de Deus,no Liceu Camões e cursou Filologia Românica, curso que o obrigou a passar um ano em Coimbra.



Os seus primeiros versos datam da infância e juventude e são editados em diversas publicações. Em 1963 sai a lume na separata da revista Ocidente a novela-quase-poema Rasgões no Sonho, que teve também a versão portuguesa do texto poético da opereta com música de Schubert Canção de Amor, que subiu à cena em Lisboa no Teatro da Trindade e inaugurou o programa da temporada lírica do mesmo ano.



Ainda em 1963, é premiado no Concurso de Manuscritos do S.N.I. como autor do original As Lágrimas Ancoradas à Sombra do Amor, que em 1965 publica em livro.



Sonhador e romântico como todo o poeta verdadeiro, ofereceu rimas e versos, entoou trovas e serenatas, cantou e encantou a terra dos avós paternos que tanto amava.



Casou-se com Maria Ester em Abril de 1967 na capela da sua casa de São José em Parada de Gonta e tiveram quatro filhos. Em plena lua de mel por terras de Serém, é informado por uma pessoa da família que deverá apresentar-se em Mafra nesse mesmo mês para o serviço militar.



O mês de Janeiro de 1968 marca o nascimento do seu primeiro filho, Rodrigo Victor, nome que era também de seu pai, avô do recém-nascido. Seis meses depois de terminada a recruta em Mafra, embarca com a família para Moçambique onde vai cumprir a comissão militar. Durante dois anos, presta serviço como alferes miliciano no Corpo Expedicionário.



Em 1969 vai a Lisboa de licença, ocasião em que recebe o premio dos Jogos Florais da Emissora Nacional na modalidade de Poesia Lírica com que tinha sido contemplado.



Nos últimos meses de 1970 regressa definitivamente a Portugal à mídia portuguesa, onde aliás já prestava serviço, e inicia a produção das rubricas de poesia ‘Vestiram-se os Poetas de Soldados’ e ‘Sobre a Terra e Sobre o Mar’ exibidas em 1971 e 1972, respectivamente. Ao mesmo tempo, colabora assiduamente com a Verbo Editora nos sectores cultural e educativo.



A 27 de Dezembro de 1971 nasce-lhe a primeira filha, a quem dá o nome de Filipa Catarina, mas a 11 de Janeiro, quando ainda mal despontava para a vida, a pequena Filipa Catarina abandona este mundo depois de uma agonia atroz e lancinante que o mergulha num luto interminável.



Em 1972, dedica à filha morta uma elegia de grande beleza poética, Poemas Acenados a Uma Criança Longe, que, mais que nenhuma, talvez, exprime num estilo incomparável a dor de uma perda sem remédio, a tristeza sem cura de uma saudade para sempre.



Em 1973, é editada a antologia de poetas portugueses ‘Vestiram-se os Poetas de Soldados — Canto da Pátria em Guerra’ em homenagem aos combatentes da guerra do Ultramar, antologia organizada por Rodrigo Emílio.



Ainda em 1973, dá à estampa mais dois livros, Primeira Colheita e A Segunda Cegueira, a que se segue um terceiro, Serenata a meus Umbrais, súmula de textos em prosa e em verso de grande beleza plástica.



A 17 de Julho do mesmo ano nasce-lhe outro filho, Gonçalo Tomás, o terceiro da família.



Perseguido pelo regime da época, Rodrigo Emílio viu-se forçado a tomar o caminho do exílio e partiu com a família para Madrid, onde a 18 de Março de 1975 veio ao mundo Constança Filipa, a segunda filha e última nascida.



Um dia, sempre acompanhado da mulher e dos filhos, deixa a Espanha que o tinha acolhido, cruza o céu do Atlântico e voa para o Canadá a alimentar uma esperança, mas em breve é torturado pela lonjura que o aflige e separa de tudo… e segue para o Brasil, onde sucede o mesmo, a mesma inquietação, a mesma ansiedade, a mesma nostalgia. As notícias que espera chegam tarde, é longe… e regressa a Madrid com o filho Gonçalo. A mulher e os outros filhos ficam no Rio de Janeiro para que o Rodrigo Victor não perca a primeira classe da escola. Mais tarde e de novo, estão todos reunidos em Madrid. É então que decide regressar a Lisboa.



Havia que refazer um pouco a vida, procurar um ponto de apoio menos incerto e mais seguro, e entra ao serviço da Rádio Renascença. Os filhos ingressam no Colégio Manuel Bernardes.



Na década de 80 vai viver para Viseu onde leciona durante três anos em escolas oficiais, mas não faz parte do seu caráter submeter-se a horários programados, a regras frias e imprecisas, a intrigas escolares, a proibições caprichosas e sem justificação… e decide dar explicações em sua própria casa. Entretanto, deixa Viseu cada fim de semana e retira-se na Casa de S. José em Parada de Gonta onde continua solitariamente, muitas vezes dias a fio e noites adentro, a sua magnífica e inspirada obra literária e poética. Onde recebe também os amigos e camaradas que o visitam e com quem partilha longas tertúlias... sempre fiel ao inseparável Português Suave e à chávena de café.



A 24 de Janeiro de 1996 recebe a notícia de que é avô. O primeiro neto chama-se Rodrigo como ele próprio e é o iniciador da quarta geração. Dois anos mais tarde, a 8 de Dezembro, nasce o segundo neto, Tiago.



Os últimos tempos em Parada de Gonta fizeram-no conhecer dias difíceis e penosos, horas cruéis que teriam derrubado uma alma menos sã ou menos preparada. Não obstante a existência discreta e pacata que levava entre pilhas de papéis e montanhas de livros, não poucas vezes se via alvo da inveja, da mesquinhês, do dito torpe e malévolo e, frequentemente, da baixeza de “gente feita à pressa com pressa de ser gente”, como ele mesmo dizia muito acertadamente...



E voltou de novo para Lisboa, não apenas porque sentia que chegava aos limites do que devia suportar, mas porque queria estar perto dos que continuavam a merecer a sua estima e que, na verdade, não o abandonaram. Depois, era o convívio literário e poético, o reencontro com velhos amigos, a partilha de ideias e gostos idênticos, a comunhão recordações, o culto do amor à Pátria... que um dia foi.



Era um farol resplandecente na noite negra e tormentosa, um carbúnculo brilhante nesta era de espanto assombrada pelo pio lúgubre do pássaro da morte... Era ele com os pés na terra e os olhos no céu, uma mão na caneta e outra na espada, o porte nobre e fidalgo do poeta-guerreiro para quem a honra se chama fidelidade.



Rodrigo Emílio tinha de pagar o tributo final... para chegar à última clarificação, talvez, que é o mais certo. Assim, foi-se deixando morrer, mas aos poucos, devagar, como o Rei-menino de Alcácer Quibir. Havia que matar saudades e quis voltar aos seus mortos e se foi em 28 de março de 2004.



OBRAS



As lágrimas ancoradas à sombra do amor (1963)

Mote para motim (1971)

Paralelo 26 s às audições do ìndico (1971)

Poemas acenados a uma criança longe (1972)

A segunda cegueira (1973)

Primeira colheita (1973)

Serenata a meus umbrais (1976)

Reunião de ruínas (1978)

Poemas de braço ao alto (1982)



Fonte: Comunidade Biografia e Poesia Portuguesa



domingo, 22 de março de 2009

dsdsdsds

sábado, 7 de março de 2009

regina