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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Vês a pedra? Vês o cardo?



Vês a pedra? Vês o cardo?


Vês a pedra?
Vês o cardo?
Sentes a ponta acerada que se crava em tua mão
Afiada pelo tempo
Com a agrura da razão?
Soltas o grito de dor que te brota da garganta
Quando te espanta o tormento dos dias
Feitos sem chão?

Vês a pedra?
Vês o cardo?
Vês os caminhos agrestes
Que trilhas entre ciprestes
Como avenidas da vida
Ponto de fuga e ruído que perspectiva
Saídas
Nos percursos descobertos?

Vês a pedra?
Vês o cardo?
Recordas o manto pardo que jorra
Da noite fria
Como fonte de agonia?
Percebes que o mar confina
Quando a terra te maltrata?

Vês a pedra?
Vês o cardo?
Vês por entre a densa mata
O caminho que percorres?
Porque só no fim tu morres
Tu que és a esperança nascida
Só porque desde o nascer
Tu corres de encontro à vida.

Miguel Esteves Cardoso

RARA


RARA


Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tato
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo



Miguel Esteves Cardoso

se tudo fosse só teu (uma despedida)


se tudo fosse só teu (uma despedida)

Por quanto em mim
De ti havia
Que a alma me enganava
Em nova vida
Dei a sombra
Que me queimava
E era minha,
Mas mesmo assim
Não me seguia.


De tanto querer
Achei em mim
A pessoa querida
Que eras tu,
E assim esqueci
Por completo
Quem era
Ao certo
Quem te queria.

Era eu,
Fui sempre eu
Que tu,
A ver comigo,
Que com o meu amor,
Nada eras
E nada tinhas.

Por muito ter amado
Em tão pouca coisa
Percebi quanto doía
O que também me era dado:
Amar sem querer mais nada
E deixar-me ficar
Só por ti.

Em vez de também me dar
Para teu mal
E para meu,
Calava-te,
Amava-te,
E mais não fiz
Senão isto,
Que tu um dia dirás
Se é verdade ou não,
Calava-me, amava-te:
Recebia-me.

E ia deitando tudo fora,
Tudo o que foi teu
E me foste dando,
À medida que mo davas.
Como havia de guardar
O que não me pertencia?

Fui recebendo.
Depois dei por mim
E sabes que mais?
Morria.
Alguém morria.

Por tudo o que uma vez foi teu
E teu, apenas,
Amor,
Alguém morria
Mas era alguém

Que não era eu.



Miguel Esteves Cardoso

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CANTIGA DE PRAIA


Estou sozinho na praia,
estou sozinho e não sei.
Que luz adormece a face
se em gritos já me afoguei?
Estou dançando na praia?
Estou dançando? Não sei.
Eu colho com as mãos da ausência
a rosa que não beijei.
Que luz chega do outro lado,
do outro rio, do outro mar?
Estou sozinho na praia...
Ó mundo, vamos dançar!

Alphonsus de Guimaraens Filho

Olhas o amanhecer


Olhas o amanhecer,
vives o amanhecer como o único instante
em que o céu é entreaberto segredo de um deus mudo.
Espera: algo vai se revelar e deves estar pronto
para mergulhar teu sonho num poço de luz casta.
O intocado te espera. E amanhece. E te iluminas
como se trincasses com os dentes a polpa do absoluto.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Luz de Agora, 1991.

NINGUÉM


Ninguém se engane se soar a hora,
se todos os relógios, de repente,
gaguejarem nem sei que dor fremente
que nunca veio e não se foi embora.
Ninguém se engane se souber quem chora,
que um grande choro convulsivo e quente
virá das coisas como espada ardente
atravessando a carne ontem, agora.
Ninguém se engane se dos seus papéis,
dos seus livros inertes, um lamento
terrível se levante como um vento
de maldição e de intenções cruéis.
Tudo, a este instante, é como um grande grito
quase a romper as cercas do infinito.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Discurso no Deserto (1975-1981)

À VONTADE

À VONTADE
(trecho final)

Não seja por isto, noite.
Melhor é que desças. Com toda a tua treva.
E entre nós — embora ressabiados e feridos — até que poderás ficar à vontade.
Pois de qualquer modo há em ti um frêmito vôo informulado,
grande ave de asas cegas…
Somos teus, como sabes, todos te pertencemos, constrangidos embora.
Mas não seja por isto.
A casa é tua — como nestes domínios é hábito dizer aos amigos —
e poderás ficar à vontade.

Alphonsus de Guimaraens Filho

É O MAR. . .



É o mar que permanece – é sempre o mar
das esperas, que acende
os olhos,
para no exausto coração deitar
o silencio das praias e das ondas
a lassidão; é o mar que permanece
e faz da solidão da criatura
a solidão da água
que a circunda.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Antologia Poética

SONETO


A uma réstia de sonho chamam vida.
A uma sombra maior chamam-lhe morte.
Vida e morte, não mais, pouso e suporte,
sopro de permanência e despedida.
Uma treva febril noite é chamada.
A uma luz mais febril chamam-lhe dia.
E entre elas se põe a estrela fria
que irrompe como flor da madrugada.
Paira em tudo um silêncio que anoitece,
que amanhece, e que vence todo ruído,
e como sol não visto num perdido
horizonte se esfaz e se retece.
Tudo é longe demais, por demais perto.
E a alma, que faz neste feroz deserto?

Alphonsus de Guimaraens Filho

ANOITECER NA LAGOA



Os juncos flexíveis contemplam a noite chegar ocultando
o injusto reino dos homens – triste reino dos homens.
A grande sombra vai aos poucos se infiltrando, e com ela um
quase remorso,
a consciência de que tudo, ai de nós! podia ser mais belo.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Antologia Poética

NA MESA



Sobre a toalha, o pão,
o bule, as xícaras, o café,
confabulam. Que dizem
no seu silêncio de coisas
tocadas de esperança,
da latente esperança
da manhã? Dir-se-ia
que se sentem ligados
à vida - ou que na vida
se irmanam, se confundem,
pousados sobre a mesa
como em seu próprio mundo,
pousados no silêncio
como se tudo fosse,
para eles, a dádiva
fascinante, translúcida.
A um canto, solitária,
uma faca os espia.

Alphonsus de Guimaraens Filho

MOMENTO


Minha amada tão longe! Com franqueza:
eu penso sempre em me mudar daqui.
Pôr na sacola o pão que está na mesa,
sair vagabundando por aí.
A luz do quarto ficará acesa.
(Foi neste quarto que eu me conheci...)
Deixarei um bilhete sobre a mesa,
Dizendo a minha mãe por que parti.
Ah! ir cantando pelo mundo afora
como um boêmio amigo das cantigas,
alma febril que a música alivia!
Se perguntarem, digam: "Ainda agora
saiu buscando terras mais amigas,
mas é possível que ele volte um dia. "

Alphonsus de Guimaraens Filho

O DELFIM



Deu-se que não havia chá, nem salão, nem mesmo
a dama que me esperava.
-O delfim é ausente.
-Senhor, o delfim é ausente.
-Então três chávenas de chá-da-índia! Três chávenas de chá-da-índia!
(Pausa)
-Mas... o delfim é ausente?
-Senhor, o delfim é morto desde os idos de dezembro.
-Então três taças de lua! Três taças de lua!
Por Deus, três taças de lua!

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

POEMA SONHADO


Se não for pela poesia, como crer na eternidade?
Os ossos da noite doem nos mortos.
A chuva molha cidades que não existem.
O silêncio punge em cada ser acordado pelos cães invisíveis do assombro.
Os ossos da noite doem nos vivos.
A escuridão lateja como um seio.
E uma voz (de onde vem?) repete incessante, incessantemente:
Se não for pela poesia, como crer na eternidade?

Alphonsus de Guimaraens Filho

DE ONDE VEM...



De onde vem a fremente
e lúcida euforia
que me faz, de repente,
habitante do dia?

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

DE REPENTE



De repente, do bolso,
caiu-me o poema.
Um poema não escrito.
Que me lembrava um pássaro em vôo
para o azul mais inocente.
Um poema simples.
O poema mais puro.
Penoso era vê-lo assim,
pássaro branco, e cego,
sequioso de azul.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

PAUSA


Uma estrela, tão bela! E a margarida
na cerca eflorescente, e os jardins,
e o segredo do início, e a dor dos fins,
e a vida, e a vida, sobretudo a vida ...
E a vertigem do som, despenhadeiro
onde aladas manhãs mal se projetam
e as vagas tardes espraiam-se e inquietam
a alma, e vem de tudo um espinheiro
e ao mesmo tempo a paz indefinível
que cai sobre o silêncio do ser triste
e o que acaso existe ou não existe
como um ardor de brasa inconsumível,
e a esperança mais alta e de tal sorte
perseguida, e o sol cálido e a luz serena
da noite, e a estranha paz que longe acena ...
— Pousa, por sobre tudo, a asa da morte.

Alphonsus de Guimaraens Filho

CANÇÃO


Deslumbra-te, agora,
com essa luz. é tua!
Tua ausente embora
numa ausente rua.
Nunca te atormente
sabê-la perdida.
Renasce fremente
como a própria vida.
Como a vida feita
de noite e de espera,
canção imperfeita
de anjo e de fera.
Deslumbra-te, eia!
com esta luz que mais se alteia
quando tudo rui.

Alphonsus de Guimaraens Filho
Discurso no Deserto (1975-1981)

NÃO SEI



Não sei onde começa o céu e nem acaba.
O infinito se dissolve como números na névoa.
Vou-me, porque a voz que chama é a mesma que chamava.
Será a mesma, acaso, a mão que ainda me leva?

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

POUSAS A CABEÇA...


Pousas a cabeça num travesseiro que ficou na infância.
Pedes a alguém que acenda a noite.
O ofegar de um paraíso onde caem uma por uma as lendas...
Houve ontem? haverá amanhã? - eis renascem de teus pés
rotos sapatos, desencantada música, um ou outro arrepio
de mão insensata colhendo flores que não desabrocham nunca.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo, 1976

NUMA VELHA IGREJA



Os que nestas lajes se ajoelharam
neste mesmo silencio adormecidos
estão: que neste chão foi que enterraram
seus ossos e seus fatos já puídos.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

MOMENTO


Nostalgia do céu e solidão dos anjos.
Ah! tudo se desfez ...Buscai-me nas estrelas.
Buscai-me, sim buscai-me em melodias louras.
Quem virá de outros céus, quem cantará nas luzes?
Tudo é branco demais e transparente... O riso
Vem de longe demais. As mãos afagam a morte.
As mãos se envolvem em frio e em asas e em neblinas.
O coração não volta ao mundo abandonado.
Tudo é longe demais e fluido. Eu ouço os anjos...
Sou a sombra perdida em músicas e chamas.
Sou alguém que perdeu o reino e está de bruços
Sofrendo a solidão e o exílio, está de bruços,
Desterrado da paz e do país dos anjos...

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Nostalgia dos Anjos (1939-1944)

ASSIM



Assim como um cheiro de curral e estrume,
mugidos nas pastagens, fresco
fluir de água (de olhos d’água), assim
como se em sítios úmidos, nos canteiros
em socalcos, o verde das folhagens,
os frutos já de vez, eis que agora
o que nos vem é este gostoso vento
rural, vento molhado das manhãs
que se banham nuas nas águas sem malicia.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

COMO UM EMBALO

Fosse uma chama, crepitaria
sob meus dedos, na solidão.
Nada mais quero, nada queria.
As noites chegam, os dias vão.
Fosse uma chama, breve arderia,
brasa de sonho, na escuridão.
Já nada quero da luz do dia...
Queima uma estrela na minha mão.
Mas nada quero da luz da estrela...
(Chegam as noites, os dias vão.)
Por que sonhá-la, se vais perdê-la,
alma perdida na solidão?

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Água do Tempo, 1976

LUZ ACESA



Além, a luz acesa
sugere a família
em torno à grande mesa;
sugere a vigília
do fazendeiro, agora
com os seus reunido;
sugere a grave hora
em que um comovido
silencio se projeta
em torno à grande mesa,
como essa luz quieta
no descampado acesa.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In: Só a noite é que amanhece

Ária ao violão


Que sonâmbula campânula
embala o íncola na ínsula
campanulando?
Cantagalo cantagálico
no áulico tez gaulesa
cantagalando.
Só, na sombra solitária
estrelinha latejante
é chama, é flor, e madruga
num rio que ri ou geme,
campanulando.
Sobre a memória madura
a cálida, a alva aurora
desce doce se incorpando,
campanulando.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Antologia Poética, 1963

DOS POEMAS



Não de vento os formei, mas do meu barro.
Não lhes dei sentimento, mas meu sangue.
Acolhe-os, pois, ainda que sejam turvo
rio a cruzar as terras que erigiste
no teu sonho maior, mesmo que sejam
somente um vago eco, um arfar penoso
de barro, solidão, de cinza e sangue.


Alphonsus de Guimaraens Filho

É


É a manhã da despedida?
A tarde da despedida?
A noite da despedida?
Não:é o que além da vida
pede vida; ou é a vida
que clama por outra vida.

Alphonsus de Guimaraens Filho
Discurso no Deserto (1975-1981)

Alphonsus de Guimaraens Filho


ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO

Alphonsus Henriques de Guimaraes Filho formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte, em 1940. No mesmo ano foi publicado
seu primeiro livro de poesia, Lume de Estrelas, pelo qual recebeu o Prêmio de Literatura da Fundação Graça Aranha e Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras.
Na época, trabalhava na Rádio Inconfidência, serviço de Rádio-Difusão do Estado. Em 1962 foi eleito membro da Academia Marianense de Letras. A obra de Alphonsus de Guimaraens Filho é situada pela crítica como  integrante da terceira geração do Modernismo.
Em 1962 foi eleito membro da Academia Marianense de Letras. Em 1974, conquistou o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, pelo livro Absurda Fábula (1973). Em 1985, ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro Nó (1984).
Nasceu em  Mariana em 03 de Junho de 1918 e morreu no Rio de Janeiro em 28 de Agosto de 2008

OBRA
Nostalgia dos Anjos (1939-1944)
Sonetos da Ausência (1940-1943)
Poesias, 1946
A Cidade do Sul, 1948
Poemas Reunidos, 1935/1960
Elegia de Guarapari (1953)
Antologia Poética, 1963
Transeunte (1963-1968)
Absurda Fábula, 1973
Discurso no Deserto (1975-1981)
Nó, 1984
O Tecelão do Assombro, 2000
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